Wednesday, June 30, 2004

para um zuluzinho



CLARIDADE DADA PELO TEMPO



III



Viver com a crueldade

da criança que

tira os olhos ao pássaro



um desconhecido

movendo-se constantemente

no deserto

em que cada pegada deixa

bem marcada na areia

a imagem

dessa outra existência

em que a morte e a memória

ainda nada significam



mais alto



muto mais alto talvez

que a claridade

do voo das aves que

partem para o desconhecido



o próprio corpo nada mais é

do que a sombra bem simples por sinal

em que,

por erro nosso ou dos outros,

já não existe

a persistência do que

foi perdido



e as mãos

as mãos que sentimos

bem presas seguras aptas

essas

todos sabemos

que podem ainda cada vez mais

esmagar com cuidado

com extremo cuidado

dilacerar suavemente



nos olhos

está o amor



Mário-Henrique Leiria





Tuesday, June 29, 2004

no momento em que me cresce nos olhos a morte dos sorrisos

as palavras são pancadas secas reinventadas numa natureza morta com lágrimas



com um sussurro na boca inspiro e expiro pétalas

E na explosão do silêncio, acabo de nascer na ausência



sim



as lágrimas cheiram a tulipas.



assusta-me a respiração desordenada dos instantes

onde o esquecimento está entre o sol e o sal.



dividida entre a luz inocente e as sílabas que a matam



devia fazer frio mas o sol é espesso



as tulipas e as mãos escrevem palavras no limiar da caligrafia

cristalizam-se estribilhos de mágoa



ninguém lê nas lacunas que separam a sombra dos dias

e onde começa a dor, voam lábios atados pelo silêncio.



a luz inocente aguarda a noite onde

as mãos abandonam-se aos dias por abrir



quando os rumores dão um nó nas lágrimas

que me bebem os olhos

as noites são frágeis e cortam o amanhecer



lentamente a luz cai sobre as palavras

tenho feridas no limiar da manhã quando vocábulos

dançam a pique numa metamorfose que

lentamente cai sobre as palavras





eue





Monday, June 28, 2004

No temas al silencio cuando ya no hay palabras

en tus manos



En el desván del alma las cosas desempolvan nuevos

nombres

que habrán de obedecerte

dócilmente.







Elizabeth Azcona Cranwell





Sunday, June 27, 2004

guardarei do teu rosto apenas o nome. a dor do espinho rasgando a pele para que nela entre uma palavra, somente uma palavra, gravada na coluna que sustentava a nossa infância.

o mel e o azeite reúnem-se entre flores e mantas de musgo. mesmo no interior da cidade. o pão reveste-nos de sombra. o teu nome reveste-nos de dor nesta noite em que vigiamos o forno do alto da mais alta torre.

pouco ficou da viagem: o rio nutrindo-se da ponte e da figueira. o teu nome - alimentando o sangue que guardo neste poema.





Ruy Ventura





Saturday, June 26, 2004

Um cientista tem um tubo de ensaio com carneiros.

Quer saber se encolher um pasto para eles se ficam como

grãos de arroz. Quer saber se é possível encolher algo fora da

existência. Quer saber se os carneiros estão cientes da sua

pequenez, se têm algum sentido da escala. Talvez pensem que

o tubo de ensaio é um celeiro de vidro...

Quer saber o que deve fazer com eles;

têm certamente menos carne e lãs do que carneiros ordinários.

Reduziu seu valor comercial? Quer saber se poderiam ser

usados como um substituto para o arroz, um genérico do arroz...

Quer saber se se os friccionar obtém pasta

vermelha entre seus dedos. Quer saber se continuam produzindo,

ou se alguns deles morrem. Põe-os sob um microscópio, e

cai adormecido contando-os...



Russell Edson







Thursday, June 24, 2004

Já não é a primeira vez que falo deste filme aqui,mas hoje voltou-me a dar uma vontade enorme de o rever. (e não é por ser com o meu Ewan)

Gostava tanto que traduzissem o livro da Sei Shonagon para português





When God made the first clay model of a human being He painted in the eyes ... the lips ... and the sex.



And then He painted in each person's name lest the person should ever forget it.



If God approves of His creation, He breathed the painted clay model into life by signing His own name.






















Wednesday, June 23, 2004

Revelação

Hoje só fotografei árvores,
Dez, cem, mil.
Vou revelá-las à noite.
Quando a alma for câmara escura.
Depois vou classificá-las:
Segundo as folhas, os anéis dos troncos,
Segundo as suas sombras.
Ah, como as árvores
Entram facilmente umas nas outras!
Vejam, agora só me resta uma.
É esta que vou fotografar outra vez
E vou observar com assombro
Que se parece comigo.
Ontem só fotografei pedras.
E a pedra afinal
Parecia-se comigo.
Anteontem — cadeiras —
E a que resultou
Parecia-se comigo.

Todas as coisas se parecem terrivelmente
Comigo...

Tenho medo.

Marin Sorescu

Sunday, June 20, 2004

Em noite de solstício ando perdida entre a música da Nico e a duas mais recentes paixões musicais , a Linda Perhacs e a Vashti Bunyan





The Fairest Of The Seasons

Now that it's time

Now that the hour hand has landed at the end

Now that it's real

Now that the dreams have given all they had to lend

I want to know do I stay or do I go

And maybe try another time

And do I really have a hand in my forgetting ?



Now that I've tried

Now that I've finally found that this is not the way,

Now that I turn

Now that I feel it's time to spend the night away

I want to know do I stay or do I go

And maybe finally split the rhyme

And do I really understand the undernetting ?



Yes and the morning has me

Looking in your eyes

And seeing mine warning me

To read the signs carefully.



Now that it's light

Now that the candle's falling smaller in my mind

Now that it's here

Now that I'm almost not so very far behind

I want to know do I stay or do I go

And maybe follow another sign

And do I really have a song that I can ride on ?



Now that I can

Now that it's easy, ever easy all around.

Now that I'm here

Now that I'm falling to the sunlights and a song

I want to know do I stay or do I go

And do I have to do just one

And can I choose again if I should lose the reason ?



Yes, and the morning

Has me looking in your eyes

And seeing mine warning me

To read the signs more carefully.



Now that I smile,

Now that I'm laughing even deeper inside.

Now that I see,

Now that I finally found the one thing I denied

It's now I know do I stay or do I go

And it is finally I decide

That I'll be leaving

In the fairest of the seasons.



Nico





Friday, June 18, 2004

É preciso soltar o ritmo que me prende.

Esta amarra de ferro à palavra e ao som.

Emudecer, no espaço, o arco e a corrente

E ser nesta varanda um pouco só de cor.

Não saber se uma flor é mesmo uma criança.

Se um muro de jardim é proa de navio.

Se o monumento fala, se o monumento dança.

Se esta menina cega é uma estátua de frio.

Um pássaro que voa pode ser um perfume.

Uma vela no rio, um lenço no meu rosto.

Na tarde de Fevereiro estar um dia de Outubro.

Nos meus olhos de morta uma noite de Agosto.

É preciso soltar o ritmo das marés,

Das estações, do Amor, dos signos e das águas,

Os duendes das plantas, os génios dos rochedos

Nos cabelos do Vento, as tranças de arvoredos.

Desordenai-me, luz! Que nada mais dependa

Das águas, das marés, dos signos e do Amor.

É preciso calar o arco e a corrente

E ser nesta varanda um pouco só de cor.



Natércia Freire







And a neglected Looking-Glass







And the Child cared nothing about the Looking-Glass

Thursday, June 17, 2004

hoje lembrei-me deste filme, lembram-se dele?











Broken Bicycles



Broken bicycles, old busted chains

With rusted handle bars, out in the rain

Somebody must have an orphanage for

All these things that nobody wants any more

September's reminding July

It's time to be saying goodbye

Summer is gone, but our love will remain

Like old broken bicycles out in the rain



Broken bicycles, don't tell my folks

There’s all those playing cards pinned to the spokes

Laid down like skeletons out on the lawn

The wheels won't turn when the other has gone

The seasons can turn on a dime

Somehow I forget every time

For all the things that you've given me will always stay

Broken, but I'll never throw them away



Tom Waits







Tuesday, June 15, 2004

Happy Bloomsday!

quando será que ganho coragem para tentar ler o Ulisses? Pode ser que este seja o meu ano Bloom





Monday, June 14, 2004

Em jeito de prenda para a minha barbilinda, Parabéns menina



Aurélia de Sousa na varanda sobre o Douro



É como quem se olhasse

num auto-retrato antigo e fluente

Ela sabe, como eu, da abatida constelação da casa

mas enfrenta-me, acabou de nascer

e abre imensamente os olhos

A névoa abraça-nos até ao osso

respira no ferro e no granito sob todas as mãos

Estranham-me a paixão dos retratos impassíveis

não sabem como visto

numa sombra perfeitamente de mim

a cidade que parti e não conheço

e nem sequer posso esquecer

Gestos soltos noutra varanda, ao fim da mesma tarde

entre escadas e o cais e o ar e o mar

Ela sabe, como eu, tudo desta casa

mas não pára de me encarar

tudo, edificação de sombras lentamente sobre sombras

o frágil furacão que vai ficando

Estranham-me a roupa escura e os olhos claros

o camafeu que disfarça os dois seios

sim. eles estão cá, inteiros, e apenas sou

a mulher que passa pelos pátios

Por mim, distraem-me os mínimos trabalhos

certa jardinagem, grades sobre rendas

Algo sopra dos fundos dos quartos

fecha as janelas, murmura versos que não possas viver

Mas ela pinta intensamente e se assim te debruça

atravessa-te toda a água do rio

o espelho inteiro da tua vida



José Manuel Teixeira da Silva







Sunday, June 13, 2004



A felicidade sentava-se todos os dias no peitoril da janela.



Tinha feições de menino inconsolável.

Um menino impúbere

ainda sem amor para ninguém,

gostando apenas de demorar as mãos

ou de roçar lentamente o cabelo pelas faces humanas.



E, como menino que era,

achava um grande mistério no seu próprio nome.





Jorge de Sena





Saturday, June 12, 2004

estou com saudades do ossanha:(



I am depressed, O so depressed.

I go to the porch and extend my fingers

Over the taut skin of night.

The lamps that link are dark, O so dark.

No one will introduce me to the sunlight

Or escort me

To the sparrows' gathering.

Commit flight to memory,

For the bird is mortal.



Forugh Farrokhzad





Friday, June 11, 2004

Dentro

de mim

há uma planta

que cresce

alegremente

que diz

bom dia

quando nos amamos

ao entardecer

e boa noite

quando florimos

à alvorada

uma árvore

que não está com o tempo

este tempo

a que chamamos

nosso



Pedro Oom





Thursday, June 10, 2004

e este?











Tuesday, June 8, 2004

Desde que li este poema, que ele me marcou muito (quase tanto como o seu autor)



Primeiro esqueci o cheiro

E ao acordar já não senti o sabor da sua boca



Depois o corpo tornou-se memória

Em vez de impressão

Esfumado, perdido, inglório



O seu rosto desaparecia

Ficavam quase nem os contornos



E no fim sentia só uma tristeza

De promessa feita e não tornada





Miguel Soares







Monday, June 7, 2004

Para o João, pensando em Vénus :)



Lá em cima há planícies sem fim

Há estrelas que parecem correr

Há o Sol e o dia a nascer

E nós aqui sem parar numa Terra a girar



Lá em cima há um céu de cetim

Há cometas, há planetas sem fim

Galileu teve um sonho assim

Há uma nave no espaço a subir passo a passo



Lá em cima pode ser o futuro

Alegria, vamos saltar o Mundo

E a rir, unidos num abraço

Vamos contar uma história

Era uma vez o Espaço



Lá em cima já não há sentinelas

Sinfonia toda feita de estrelas

Uma casa sem portas nem janelas

É estenderes o braço e tu estás no Espaço!



Paulo de Carvalho











Saturday, June 5, 2004

Às pessoas saudáveis faço o seguinte apelo: não teimem em ler apenas esses livros saudáveis, travem um conhecimento mais estreito, também, com a literatura dita doentia, que vos transmitirá decerto, uma cultura edificante. As pessoas saudáveis deviam sempre expor-se um pouco ao perigo. Senão, com mil raios, para que serve ser saudável?



Robert Walser







Friday, June 4, 2004

Comunicações



O vento tinha-me comido

parte da cara e as mãos.

Chamava-me anjo andrajoso.

Eu esperava.



Alejandra Pizarnik





Thursday, June 3, 2004

E o filme desta semana é fabuloso (começo a sentir-me o Laurodérmio)



Wednesday, June 2, 2004

Para os que me mimaram hoje (e sempre)





UM MANTO DE TERNURA



Dizer-te, meu amigo,

que, à uma da manhã

e desta noite,

está lindo o nevoeiro



que um manto de sossego

assim inteiro

eu desejava dar-te

- e ter comigo.



Enviava-te um frasco,

se pudesse,

fechado em carta azul,



ou por fax de sol

(não fora o medo que o sol

o desfizesse)



Assim, mando daqui

esta espessura

de cheiro muito branco

e muito belo:



um manto de ternura

dobado num novelo,

que chegue

até aí.





Ana Luísa Amaral





Hoje completei 10 anos. Fabriquei um brinquedo com palavras. Minha mãe gostou. É assim:



De noite o silêncio estica os lírios.



Manoel de Barros



Tuesday, June 1, 2004

Mais um ano e repete-se o post ridículo



PARABÉNS A MIM