Tuesday, August 17, 2004

Destino

Pastora de nuvens, fui posta a serviço

por uma campina desamparada

que não principia nem também termina,

e onde nunca é noite e nunca madrugada.

(Pastores da terra, vós tendes sossego,

que olhais para o sol e encontrais direção.

Sabeis quando é tarde, sabeis quando é cedo.

Eu, não.)

Pastora de nuvens, por muito que espere,

não há quem me explique meu vário rebanho.

Perdida atrás dele na planície aérea,

não sei se o conduzo, não sei se o acompanho.

(Pastores da terra, que saltais abismos,

nunca entendereis a minha condição.

Pensais que há firmezas, pensais que há limites.

Eu, não.)

Pastora de nuvens, cada luz colore

meu canto e meu gado de tintas diversas.

Por todos os lados o vento revolve

os velos instáveis das reses dispersas.

(Pastores da terra, de certeiros olhos,

como é tão serena a vossa ocupação!

Tendes sempre o início da sombra que foge...

Eu, não.)

Pastora de nuvens, não paro nem durmo

neste móvel prado, sem noite e sem dia.

Estrelas e luas que jorram, deslumbram

o gado inconstante que se me extravia.

(Pastores da terra, debaixo de folhas

que entornam frescura num plácido chão,

Sabeis onde pousam ternuras e sonos.

Eu, não.)

Pastora de nuvens, esqueceu-me o rosto

do dono das reses, do dono do prado.

E às vezes parece que dizem meu nome,

que me andam seguindo, não sei por que lado.

(Pastores da terra, que vedes pessoas

sem serem apenas de imaginação,

podeis encontrar-vos, falar tanta coisa!

Eu, não.)

Pastora de nuvens, com a face deserta,

sigo atrás de formas com feitios falsos,

queimando vigílias na planície eterna

que gira debaixo dos meus pés descalços.

(Pastores da terra, tereis um salário,

e andará por bailes vosso coração.

Dormireis um dia como pedras suaves.

Eu, não.)

Cecília Meireles









No comments: